“Kubo e as Duas Cordas” devia ser exibido nos museus

Há poucas coisas mais irritantes do que ouvir alguém referir-se ao cinema como a sétima arte, como se fosse possível catalogar a arte segundo uma qualquer escala de mérito ou dificuldade de execução. Este ranking é ainda mais ridículo pela incapacidade que temos em definir a palavra arte.

Fernando Pessoa, por exemplo, resolvia o debate da forma menos complicada possível: “Arte é tudo aquilo que é realizado com sentido artístico”. O que levanta a questão evidente: desenhar uma bola preta num fundo vermelho é uma peça de arte? Sim, é. Porque essa bola e esse fundo vão sempre representar coisas diferentes na cabeça de quem as vê.

“Kubo e as Duas Cordas” estreou esta quinta-feira, 8 de setembro, nos cinemas portugueses — mas devia ser exibido nos museus, ao lado de pinturas, esculturas e instalações. A história em stop-motion dos estúdios da LAIKA, que demorou mais de cinco anos a ser concluída, é uma esplendorosa narrativa visual que, frame a frame, nos mostra o que nunca vimos. Nunca. O cinema é melhor desde que “Kubo e as Duas Cordas” existe. E o mundo também.

“Se tem de pestanejar, faça-o agora.”

“Se tem de pestanejar, faça-o agora.” Esta frase abre o argumento, mas não prepara o espectador para a hora e meia seguinte. Logo no primeiro plano, assistimos a uma cena épica de uma mulher que tenta sobreviver a uma tempestade no oceano antes de ser atingida por uma onda gigante.

Esta imagem é inspirada em “A Grande Onda de Kanagawa”, a célebre pintura japonesa de 1830. A mulher (com a voz de Charlize Theron) é uma feiticeira e mãe de Kubo, um rapaz sem um olho que conta histórias com origamis mágicos na rua de uma aldeia algures no Japão.

“Kubo teve a coragem de dar um passo atrás e regressar aos planos únicos e mais longos dos filmes originais de stop-motion.”

Aos poucos vamos percebendo o que aconteceu ao pequeno Kubo (Art Parkinson), à mãe, ao pai, ao avô e às tias. Todos são importantes e todos vão aparecendo, de uma maneira ou de outra. Estas revelações levam o herói a fugir de casa em busca de uma espada inquebrável e uma armadura mágica que o vão ajudar a derrotar um espírito maléfico (Ralph Fiennes). Pelo meio, torna-se amigo de uma carocha (Matthew McConaughey) e uma macaca ultra protetora.

Os diálogos não são brilhantes e a construção das personagens tem várias inconsistências e pistas que nos levam a becos sem saída. O melhor exemplo disso são os dilemas internos de Kubo — intensos, mas que nunca ganham a dimensão que mereciam. Isso é uma pena, mas não é uma tragédia. Os nossos olhos continuam vidrados em cada detalhe de cada frame de cada cor de cada cenário. Tudo acompanhado por uma versão incrível interpretada por Regina Spektor da música original de George Harrison, “While My Guitar Gently Weeps”.

Outra das enormes qualidades de “Kubo” é a sua capacidade de redefinir o ritmo dos filmes de animação. Numa era dominada pelos efeitos cada vez mais acelerados em CGI (animação realizada em computador) da Pixar/Disney, a LAIKA — que já nos tinha trazido “A Noiva Cadáver”, de Tim Burton, em 2005 — teve a coragem de dar um passo atrás e regressar aos planos únicos e mais longos dos filmes originais de stop-motion. Muito por culpa do CEO e fundador do estúdio, Travis Knight, que saiu do escritório em Hillsboro, no Oregon, para se estrear na realização. Tudo sustentado por um sólido orçamento de 53 milhões de euros.

Valeu a pena. Lembram-se do primeiro parágrafo desta crítica? Esqueçam lá isso. Este é o melhor filme de animação de sempre. Mais do que isso. É uma obra de arte — que vai ser diferente na cabeça de cada um.